A pandemia aprofundou ainda mais a situação precária vivida
por milhões de brasileiros. A insegurança alimentar leva centenas de pessoas ao
açougue Atacadão da Carne, em Cuiabá, em busca de doação
RENAN MARCEL
|
FELIPE BETIM
Cuiabá / São Paulo - 25 JUL 2021 - 10:26 BRT
Em Cuiabá, a capital de Mato Grosso e do milionário
agronegócio brasileiro, uma fila se forma na rua lateral do Atacadão da Carne
antes das 9h desta quarta-feira. O açougue é conhecido pelo preço “mais em
conta”. Mas na última semana ganhou uma involuntária fama nacional justamente
por causa dessa fila, onde centenas de pessoas esperam horas debaixo do sol
quente, sentados na calçada, até que uma porta lateral se abra às 11h e um
funcionário comece a distribuição do que restou da desossa do boi. São, de
fato, ossos com resquícios da carne vendida e que servem de uma improvisada
fonte de proteína da população mais humilde. “É a maior felicidade a gente
conseguir um ossinho aqui, porque está feia a crise! Eu estou desempregado e
não tem para onde a gente recorrer. Faz tempo que eu não como carne, se não
fosse o ossinho. Tudo está caro!”, conta Joacil Romão da Silva, de 57 anos.
MAIS INFORMAÇÕES
A cabeleireira Jaqueline Silva Viana, de 40 anos, em sua
casa, com os filhos Ítalo, 21, e Tamires, 11, e o neto Davi, 3. Desempregada
por causa da pandemia, a família depende de doações para viver e já recorreu ao
unidades de saúde passando mal de fome. A família mora em Ceilândia, cidade
satélite do Distrito Federal, no Brasil.
“Não é doença, é fome”
Metade da população brasileira hoje enfrenta a fome e a
falta de direitos
Famílias que perderam tudo com a crise e agora estão em
situação de rua, em São Paulo.
Pandemia leva famílias para as ruas de São Paulo e acelera
mudança de perfil da população sem-teto
A pandemia de coronavírus aprofundou ainda mais a situação
precária vivida por milhões de brasileiros. O desemprego aumentou, os preços
subiram e a fome explodiu. São mais de 19 milhões de brasileiros passando fome,
segundo a última pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e
Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Em 2018, eram 10,3 milhões. A
perda de poder aquisitivo deixou, ainda, mais da metade do Brasil sem acesso
pleno e permanente a alimentos. São 116,8 milhões de brasileiros (55,2% da
população) que não necessariamente comem as três refeições por dia (insegurança
alimentar). Três anos atrás, o IBGE registrava 36,7% da população nesse status,
o que já era alto em comparação com 2013: 22,9%.
A ação do açougue de Cuiabá já ocorre há mais de 10 anos.
Mas, antes da pandemia, a fila reunia entre 20 e 30 pessoas, segundo Edivaldo
Oliveira, de 58 anos, dono do local. “Agora, triplicou ou mais. Hoje são 200
pessoas. Estamos com dificuldade para atender e a gente está se esforçando ao
máximo. Mas é muita gente mesmo”, conta. Os sinais de desarranjo estão por toda
parte. Nos preços, que saltaram 15,3% entre julho de 2020 e junho 2021 somente
no caso dos alimentos (IPCA). No alto desemprego, que já atinge cerca de 15
milhões de pessoas no Brasil. No aumento da população morando nas ruas e nas
filas de doação de marmita vista em qualquer ponto de São Paulo.
Os supermercados já oferecem opções mais baratas inclusive
para substituir o arroz e o feijão, os dois principais alimentos da dieta
brasileira. Um pacote de cinco quilos de arroz ficou 48% mais caro no último
ano e pode chegar a 30 reais em alguns locais. Assim, algumas marcas oferecem
nos supermercados os chamados “fragmentos de arroz”, opção mais barata, por
vezes usada como ração para animais. Uma das empresas que passou a oferecer é a
Rampinelli, que colocou esse produto no cardápio em 2016. Os mercados também já
têm disponível a “bandinha de feijão” —feijão quebrado. O preço do feijão preto
subiu 22% no último ano e o pacote de um quilo chega a custar 10 reais em
alguns supermercados, enquanto que as bandinhas de feijão valem metade do
preço.
Ana Paula dos Anjos, de 38 anos, também busca ajuda no Atacadão
da Carne. O preço do alimento subiu 38% no último ano. Além disso, ela conta
que há um ano e dois meses está afastada do trabalho por causa de um acidente
que sofreu na empresa. Sem assistência do Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS) e sem auxílio da empregadora, virou rotina frequentar a fila em busca de
doação. “Estou me virando, passando por necessidade. Sou eu quem sustento a
casa e muitas vezes deixo de comer para alimentar meus filhos. Três vezes na
semana estou aqui”, conta ela, que cuida dos quatro filhos sozinha. “Meus
filhos choram querendo as coisas para comer e o jeito é pedir ajuda.”
Além de recorrer ao Atacadão da Carne para a alimentação
diária, Celina Mota, de 56 anos, também consegue no mercadinho do bairro
legumes e frutas que não foram vendidos e seriam descartados. “Conversei com o
rapaz lá e ele me arranjou essas verduras, que eu cozinho um pedaço a cada dia.
Com os ossinhos vai ajudar. Dá para ir vivendo”, garante ela, que também está
desempregada. É com a ajuda que recebe que ainda consegue alimentar os netos.
“Eu faço ensopado, frito, corto tudinho e congelo para ir comendo durante a
semana. E assim vou me virando”, complementa, mostrando tomates, banana e
batata doce que conseguiu arrecadar.
O açougue não atende somente pessoas dos bairros periféricos
da região. De acordo com Edvaldo Oliveira, o dono do local, já houve registro
de pessoas de cidades vizinhas enfrentando a chamada “fila dos ossinhos”. “Eu
vejo que a fome e a necessidade dessas pessoas são muito grandes. Para pegar
uma sacolinha de um quilo ou um quilo e meio de ossinho, elas chegam antes das
9h e ficam às vezes até 13h esperando. E elas são gratas por isso, por algo que
as pessoas que têm mais estabilidade não dão valor algum”, comenta. A esposa do
comerciante, Samara Oliveira, de 38 anos, espera que a exposição que o açougue
ganhou inspire outros empresários a serem solidários. “Não é só de carne que
eles precisam, eles precisam de arroz, feijão, precisam de uma farmácia que venha
aqui ajudar com remédios, de roupas. É um ‘oi, como vai, você está bem?’”,
afirma.
A fila tornou-se um ícone da pobreza do Brasil de hoje e foi
noticiado em todo o país. Gente, como Gustavo da Silva Costa, de 25 anos, se
solidarizou e levou mais de 20 quilos de frango para doar. “É uma quantidade
que, infelizmente, foi pouco devido à quantidade de pessoas aqui”, afirma. A
distribuição dos frangos não demorou nem um minuto, as pessoas correram até
onde o rapaz estava para receber um pacote. “Eu vi uma reportagem e decidi
ajudar. Muita gente pode somar e ajudar essas pessoas, que realmente precisam.
No mercado de trabalho, infelizmente, não tem mais oportunidades”, afirma o
motoboy.
O açougue não atende somente pessoas dos bairros periféricos
da região. De acordo com Edvaldo Oliveira, o dono do local, já houve registro
de pessoas de cidades vizinhas enfrentando a chamada “fila dos ossinhos”. “Eu
vejo que a fome e a necessidade dessas pessoas são muito grandes. Para pegar
uma sacolinha de um quilo ou um quilo e meio de ossinho, elas chegam antes das
9h e ficam às vezes até 13h esperando. E elas são gratas por isso, por algo que
as pessoas que têm mais estabilidade não dão valor algum”, comenta. A esposa do
comerciante, Samara Oliveira, de 38 anos, espera que a exposição que o açougue
ganhou inspire outros empresários a serem solidários. “Não é só de carne que
eles precisam, eles precisam de arroz, feijão, precisam de uma farmácia que
venha aqui ajudar com remédios, de roupas. É um ‘oi, como vai, você está
bem?’”, afirma.
A fila tornou-se um ícone da pobreza do Brasil de hoje e foi
noticiado em todo o país. Gente, como Gustavo da Silva Costa, de 25 anos, se
solidarizou e levou mais de 20 quilos de frango para doar. “É uma quantidade
que, infelizmente, foi pouco devido à quantidade de pessoas aqui”, afirma. A
distribuição dos frangos não demorou nem um minuto, as pessoas correram até
onde o rapaz estava para receber um pacote. “Eu vi uma reportagem e decidi
ajudar. Muita gente pode somar e ajudar essas pessoas, que realmente precisam.
No mercado de trabalho, infelizmente, não tem mais oportunidades”, afirma o
motoboy.
